RPG é a arte da criação de um universo.
Para o mestre, é a sensação de ser um Deus. Soberano, triuno (onipresente, onipotente e onisciente), dono da vida e da morte em seus aspectos mais simples.
Para jogadores é a capacidade de criar uma lenda. Um personagem que pode ficar conhecido em tantas outras mesas elevando seu status de forma a virar um ser tão conhecido que será propagada sua jornada por muitas mesas.
Mas muitos jogadores e mestres, usam este potencial de ultra realidade para escapar de uma realidade muito diferente e às vezes até dolorosa.
Vamos começar devagar dessa vez, desacelerar um pouco a narrativa para que possamos manter um nível de entendimento mais próximo do que eu quero para que todos possam compreender a seriedade dessa situação.
Nos dias de hoje, não é mais incomum ter pessoas de diversos gêneros e opiniões sobre si. Atualmente, eu vivo um cotidiano em que encontro muitas pessoas o tempo inteiro nos eventos de RPG.
Pessoas de várias nacionalidades, às vezes, crenças, dogmas e, cada um traz consigo um tipo de estigma que conta um pouco de sua história. Alguns chegam com cicatrizes muito bem disfarçadas de sorrisos, mas por dentro, estão em prantos, aos gritos, clamando por ajuda.
Neste momento que é possível entender o quanto estes tipos de sofrimentos passam a ser motivo de fugir cada vez mais da realidade.
Quem de nós tem autoridade para julgar uma pessoa que está numa situação de sofrimento assim e usa o RPG pra aliviar um pouco sua dor diária?
Exatamente, nenhum de nós, mestres ou jogadores, e tão pouco profissionais da psicologia ou psiquiatria pode julgar, se foi neles que pensou.
Mas sabe uma coisa que podemos muito fazer? Chega quase a ser nosso dever. Sabe o que é?
O nosso melhor.
Vou explicar.
No último evento que eu tive o privilégio de ser mestre, a organização do evento criou uma ficha de consentimento.
Nesta ficha, temos algo que, pelo menos para mim é um tópico bem inovador.
Falamos nessa ficha um pouco daquilo que o jogador “permite” para uma aventura que ele vai estar inserido.
Um dos pontos que está inserido na ficha é ARANHAS, e, na ficha, temos a opção de poder narrar sem problemas com este tema, narrar com cuidado quando abordar este tema ou de forma nenhuma usar este tema.
Dentre tantos outros tópicos, algo que eu percebi é que o preenchimento dessa ficha, nos dará uma prévia visualização de com quem estamos lidando ao narrar uma aventura.
Pensa comigo.
Eu começo a narrar a chegada de uma horda de orcs num vilarejo onde eles começam a pilhar, roubar, estuprar, agredir homens, mulheres, crianças, idosos... neste ínterim, imagina que tenha um jogador que, por acaso, presenciou violência doméstica ou sofreu um estupro ou agressão de alguma forma ao seu corpo ou espírito.
Essa pessoa definitivamente não vai se divertir o tanto que eu espero que ela aproveite, mas será que eu tenho como adivinhar que esse trauma está alí? Ou pior, pode até ser recente, eu tenho como saber sem conhecer aquela pessoa?
A ficha de consentimento é um adicional pré-campanha.
Para um dia de evento, onde o mestre já chega com uma campanha pronta na maioria das vezes, para começar e terminar naquele mesmo dia ou até mesmo em pouco mais de 2 horas; a ficha de consentimento não var dar muita chance do narrador adaptar a história que ele já tem pronta para as pessoas jogarem.
Entenda. Caso a campanha seja para derrotar um grupo de hobgoblins que sequestrou a filha de um líder de uma aldeia e os aventureiros precisam adentrar as florestas negras e matar monstros, imagina ter fichas de consentimento que deixam claro que um ou mais jogadores não gostem de temas com sequestro de crianças ou escorpiões, quando um dos monstros é um escorpião gigante.
Esse é um recurso que podemos usar para que, tantos jogadores que acabam se refugiando no RPG possam ter um abrigo tranquilo enquanto os mestres trazem diversão sem que acabe reabrindo alguma ferida.
Quando procuramos abrigo, esperamos descansar da tensão, do medo, do estresse. Desejamos que este abrigo seja seguro, tranquilo, protegido desse mundo que traz os problemas que não queremos, e às vezes, não conseguimos enfrentar.
Mas, antes de continuar, deixa eu levantar mais um tópico aqui, rapidão.
Quando houver um caso de um jogador que está neste estado de fuga da realidade e este chegar até uma mesa, qual deverá ser o procedimento do mestre?
Eu não vou oferecer opções e sim questionamentos.
Será que ele deve adivinhar que aquele jogador está passando por algum tipo de problema?
O mestre, ainda que, por acaso, saiba quem é aquela jogadora, ele tem obrigação de mudar sua campanha, ficha de monstros, cenários, por causa dos traumas dela?
Ele deve, por acaso, evitar narrar para aquele jogador?
O mestre deve ajudar a jogadora e fazer uma narração que esteja diretamente ligada a pontos e questões que possam ajudar?
Agora vem a resposta de todas essas questões.
O mestre não é responsável pelo estado emocional de um jogador. Não é responsabilidade dele ou dela, mestrar em torno de “pisar em ovos” por que um jogador não se encontrar bem.
O dever do mestre é, com a ajuda da ficha de consentimento, entender como conduzir a mesa de forma sadia a todos os jogadores envolvidos na narrativa.
No meu caso em específico, eu reconhecendo que um dos jogadores está com algum tipo de problema, automaticamente peço um tempinho pro xixi e chamo pra conversar.
Independente de para onde essa conversa vá, eu sempre indico conversar com um profissional, pois ele ou ela terá a forma correta de tratar uma ferida assim.
Eu deixo a pessoa continuar na campanha ou peço para ela sair?
Como mestre, eu aprendi a questionar meus jogadores no momento do intervalo.
Eu sempre pergunto se eles estão gostando do rumo da narrativa e se a campanha está agradável. Caso eles queiram manter o mesmo tom, a gente segue, caso não, eles podem sugerir mudanças e eu vou me adaptando a isso para que eu possa trazer um mundo incrível para eles e principalmente para os que estão tendo o primeiro contato com o RPG ou até mesmo aqueles que já estão mais acostumados.
Um bom mestre de RPG, sempre está atento a seus jogadores e às reações deles para cada momento de sua narração. Saber perceber a empolgação, o ânimo ou até mesmo a falta de interesse é crucial para que possa alcançar cada jogador como se espera.
É justamente nessa percepção do jogador que o mestre pode “sentir” cada participante.
É exatamente nesse sentir que o mestre pode ou não, se aproximar mais de seus jogadores para poder criar um elo de amizade, uma ponte, um acesso.
“Mas isso quer dizer que o mestre pode chegar a intervir na situação, caso ele a descubra? Pode sugerir alguma coisa, até mesmo caso o mestre esteja passando pelo mesmo problema?”
Não, de maneira alguma. O mestre pode, obviamente, se tiver muita abertura pra isso, aconselhar um acompanhamento, e ainda assim, é muito subjetivo, pois, até mesmo um aconselhamento desses, pode ser visto como uma ofensa.
É bom senso. Muito bom senso. Pois, eu acredito piamente que uma consulta com um psicólogo deve fazer bem, ao menos, fez muito bem para mim, conversar e expor certos aspectos da minha vida. Grande parte, não tinha a ver com RPG, mas no que tange ao assunto em questão, eu falei sim e foi muito saudável.
De toda forma, exponho o fato que, nem toda fuga é um malefício, da mesma forma que algumas fugas podem se tornar um mal irreparável, precisamos, como mestres e jogadores, estarmos atentos a isso na nossa vida e até mesmo nas vidas ao nosso redor.
Aguardem o Ato 4, ainda tenho muito o que conversar sobre este assunto com vocês.
REFERÊNCIAS:
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